segunda-feira, 28 de março de 2011

Herança


O meu avô vivia da papelaria.

Atravessou a vida praticamente em silêncio e nos poucos intervalos de que dispunha, tal como eu, agarrava na máquina fotográfica e desaparecia. Ninguém sabia onde estaria, nem mesmo depois de verem as fotografias alinhadas no albúm, por datas e locais.

Na altura não sabíamos para que serviam, eram apenas fotografias.

Hoje percebo-o como ninguém.


Quando daqui a uns anos encontrarem no meu baú - sim, tenho um baú - a minha herança, aquela que guardo no conforto suave de um esconderijo, talvez percebam do que falo.

Hoje, ainda não posso falar com aquele silêncio com que nos entendíamos e o que me comove nas fotos que deixaste, é a possibilidade de te/me conhecer.

O quase poder tocar naquele tempo.

Ensinaste-me a VER. Deixaste-me este gosto de herança e o que eu deixo é só para quem quiser ver. Gosto de sentir esta "bagagem", este "recortar" o tempo e ir a sítios que quero ainda levar comigo. A fotografia dá-me igualmente a sensação de esperar do momento o que sabemos que Outros nunca nos darão, o estender o instante sem saber o que virá.


Escrevo isto porque estou a olhar para as tuas fotografias. Em silêncio. Como gostas.

Não sei o que pensas que deixaste.

Sei que trago o teu nome comigo

e só o entrego

a quem provar pertencer-lhe.

2 comentários:

D disse...

. (tentativa de comentário silensioso)

Mar disse...

O silêncio (também) reconforta, quando cúmplice.