sábado, 20 de outubro de 2007

Ritual

Bebes sempre a mesma bica, sempre à mesma hora, sempre no mesmo café.
Enquanto muitos se apressam tu chegas e aproximas-te do balcão, com esse teu passo certo e fazes o pedido. Quando te põem a chávena fumegante em cima do balcão, inclinas ligeiramente a cabeça para a frente, esboças um "obrigado", pegas no teu desejo e diriges-te para uma mesa, sempre a mesma mesa. Depois de sentado pegas suavemente na chávena, o tempo suficiente para que o café arrefeça de modo a que possas bebê-lo sem que te queime os lábios. Após este breve momento de espera, ergues então a chávena até aos lábios e neste movimento, antes de dares o primeiro golo, ergues também o olhar por cima do vapor quente, dando a volta à sala que se apresenta aos teus olhos. Olhas toda a cena como se não fosses um habitué desse lugar. Mas apesar de ser um olhar atento, poderia dizer-se que estás longe dali, que os teus pensamentos estão muito para além daquela sala, daquelas pessoas, daquele café.
Por vezes penso, se alguém me perguntasse se te conheço poderia dizer que sim? sem nunca termos trocado uma palavra sequer?... Afinal, observo todos os teus movimentos e sei de cor o teu ritual do café... o empregado não sabe o modo como olhas para as coisas e pessoas e nem imagina a maneira como fazes (ou és) o tempo.
Haverá realmente alguém que saiba tudo acerca daqueles que dizem ser seus "conhecidos"?
Não sei... Não será mais fiel o gesto de alguém do que as palavras que esse alguém nos diz?
Mais uma vez não sei... mas prefiro os gestos, prefiro os gestos às palavras que me forçam a falar a língua que o outro fala e não aquela que pretendo falar,
a língua das coisas poucas,
a língua das coisas pequenas,
a língua das coisas simples.

1 comentário:

Hugo Vieira disse...

Os rituais são a certeza de que o Mundo pode girar ao contrário. O Olhar é a fonte que nos faz ter certeza que nem toda a lógica tem antónimo. Nem o antónimo tem sinónimo nem antítese.

Porque todos os olhares são os que ficam escondidos na sombra de um poente, deixo-Te aqui o beijo, à luz do estrelado céu de Lisboa.
Beijo Teu.
Apenas eu, Hugo